"O tema da Justiça Desportiva mereceu durante os últimos anos muitas e profundas reflexões por parte dos especialistas, mas poucas vezes ultrapassou o âmbito de Colóquios e Seminários de Direito. Para os agentes desportivos, como para a opinião pública, tudo se confinava a uma discussão de poder, perspectivando-se as decisões em função dos interesses em causa, independentemente de critérios legais, comandos de Direito ou concepções de Justiça. A Justiça Desportiva era a apóstrofe numa construção associativa moldada no tempo de um outro desporto e teimosamente alheia à emergência de regulação que a nova indústria do espectáculo desportivo reclamava incessantemente.
O País foi alertado para o tema no Caso Gil Vicente/Mateus. Por vez primeira, e às escancaras, o espaço da comunicação social foi dominado por discussões e debates sobre regras, princípios, organização e funcionamento da denominada Justiça Desportiva. Percebeu-se então a importância — e a necessidade — de um sistema jurisdicional independente e credibilizado, alheio às pressões associativas e aos interesses económicos.
Hoje, o processo Apito Final repristinou, e de forma acentuada, esta discussão. E os velhos paradigmas de uma jurisdição desportiva concebida no contexto associativo e constituída por lógicas de composição dos poderes desabaram com estrondo.
O resultado da reunião de sexta-feira do Conselho de Justiça, segundo os relatos conhecidos, é, precisamente, a directa repercussão disto mesmo. O caso já possuía antecedentes conhecidos. E preocupantes. O presidente originário deste órgão, o Juiz Conselheiro Herculano Lima, renunciara no final de 2007 ao cargo, na sequência da redução da pena a Valentim Loureiro, tecendo considerações e juízos que punham em causa a isenção do Conselho e a sua capacidade para perseguir disciplinarmente esta natureza de infracções. Depois, a segurança e o à vontade com que os arguidos dos processos disciplinares conexionados com o Apito Final se pronunciaram sobre os resultados previsíveis dos recursos interpostos dos acórdãos condenatórios da Comissão Disciplinar da Liga, parecendo premunir absolvições e arquivamentos. Subentendiam que a «ordem desportiva» poria em devida «ordem» os excessos de voluntarismo da Comissão presidida pelo Dr. Ricardo Costa. A instante utilização do argumento — juridicamente ad absurdum — da inexistência de caso julgado na condenação do Futebol Clube do Porto junto da UEFA (como se o trânsito em julgado existisse aquém de Elvas e desaparecesse além de Badajoz) sugeria a adivinhação de que o Conselho de Justiça daria provimento ao recurso de Pinto da Costa, estendendo os seus efeitos ao Futebol Clube do Porto. Esta a tese à exaustão explorada nestas semanas.
Esqueceram-se os vaticinadores que o Conselho de Justiça é um órgão plural. E que, pelos vistos, tem uma maioria que resiste e não teme as pressões.Do que se lê e ouve sobre os acontecimentos de anteontem não se percebe como o presidente «destitui» o relator de um processo, não admitiu o recurso de uma sua decisão e não acatou a respectiva deliberação revogatória; como encerrou a reunião sem cumprir a ordem de trabalhos, em oposição com a vontade do órgão maioritariamente expressa; como lavrou acta da reunião, sem ter sido assinada ou votada pelos presentes; como abandonou a reunião invocando que a mesma perdeu os requisitos deliberativos apesar de manter o quórum.
Tudo isto cheira a estratégia impeditiva da apreciação e votação dos acórdãos já relatados e que apontariam para a confirmação das deliberações da Comissão Disciplinar da Liga. O presidente do Conselho de Justiça parece ter agido como o menino dono da bola. Não o deixaram jogar. Foi-se embora com ela debaixo do braço.Este episódio é demasiadamente grave para passar em claro. Mas há, desde já, alguns aspectos que importa considerar: o Conselho de Justiça, por expressão maioritária, confirmou as condenações dos arguidos; estas deliberações não poderão deixar de ser apreciadas pela UEFA e permitir que o seu Comité de Apelo repare o agravo, revogue a deliberação de admissão do Futebol Clube do Porto e deixe o recurso interposto junto do TAS sem objecto; o Regimento do Conselho de Justiça, os Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol ou a Lei não conferem ao presidente deste órgão qualquer poder especial que converta as suas decisões em prevalentes sobre as deliberações tomadas colegialmente; A recusa de cumprimento da ordem de trabalhos, designadamente do julgamento de recursos de processos disciplinares por parte do presidente de uma instância jurisdicional assume uma extrema gravidade, principalmente compreendendo o exercício de poderes públicos.
Duas notas finais: uma, de saudação aos cinco vogais do Conselho de Justiça que demonstraram conhecer a sua responsabilidade especial de titulares de um poder do Estado e não temeram exercê-lo. A segunda, para relevar que este caso demonstra ser absolutamente vital para a credibilidade do Desporto que a Justiça Desportiva seja revista e reformada, de cima a baixo, sem tibiezas.
Fica-nos, enfim, uma mensagem positiva: a lógica do caciquismo e das pressões do poder não se quadra com espíritos independentes e livres. E, felizmente, ainda os há".
Fernando Seara
A Bola
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